sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Entrevista - O movimento indígena é reconhecido como o novo protagonista político

Nos últimos anos tem sido notório o poder de mobilização e organização da população indígena em vários pontos da América Latina. Ao longo de tantos anos de exclusão e de invisibilidade, aos povos indígenas de Abya Yala cabe o papel de protagonistas políticos com forte incidência no contexto social.

Em busca do "Bem Viver" e da consolidação de seus direitos, entidades e organizações se fortalecem cada vez mais e dizem em alto e bom som a que vieram. Esta melhor articulação incidiu em avanços marcantes como a realização, em maio de 2009, da IV Cúpula Continental de Povos e Nacionalidades Indígenas, onde se fechou acordos essenciais para a garantia dos direitos indígenas e a defesa da Mãe Terra. Hoje, é possível afirmar que as demandas desta população estão inseridas nas agendas dos movimentos sociais em todo o mundo.

Em entrevista, Miguel Palacín Quispe, coordenador geral da Coordenadora Andina de Organizações Indígenas (CAOI), avaliou as ações e os acontecimentos de 2009, como o marcante massacre de Bagua, ocorrido no Peru, reafirmou a disposição da população indígena para lutar ativamente por seus direitos e abriu a agenda de estratégias do movimento indígena para 2010.

Tendo como base o massacre de Bagua, podemos dizer que 2009 foi um ano de dificuldades e retrocessos para os indígenas e para aqueles que lutam por sua causa?

Miguel Palacín Quispe - O massacre de Bagua marca um antes e um depois para o movimento indígena no Peru. Foi o ponto mais visível de uma sistemática política de `entreguismo', vulneração de direitos indígenas e criminalização dos protestos. A morte sempre é uma tragédia e pior ainda se não é investigada e sancionada. Tendo isso muito claro, não podemos deixar de assinalar que as mobilizações amazônicas fortaleceram a articulação com os indígenas andinos, concitaram uma solidariedade nacional que não se via no Peru desde há mais de duas décadas e despertaram a indignação mundial, o que resultou na derrogatória de quatro decretos legislativos que violam direitos indígenas, ponto central da plataforma. Diversos organismos das Nações Unidas e da sociedade civil de todo o globo têm questionado severamente o governo de Alan García, acusando-o de violar os direitos humanos e instrumentos internacionais que estabelecem os direitos indígenas. No entanto, a perseguição contra líderes indígenas continua e segue-se outorgando concessões, sem consultas, de territórios indígenas a empresas extrativas, pelo que não há que baixar a guarda e seguir pressionando o governo.

Em matéria de avanços, quais os ocorridos que se podem destacar em 2009?

Miguel Palacín Quispe - A visibilidade, a articulação continental e a incidência do movimento indígena conseguiram grandes avanços. Um espaço chave para ele foi a IV Cúpula Continental dos Povos e Nacionalidade Indígenas que se reuniu em Puno, Peru, em maio deste ano. Ali se tomaram acordos-chaves para a defesa de nossos direitos e da Mãe Terra. Um deles foi a ratificação da convocatória da Minga Global, que se traduziu em mobilizações, fóruns e pronunciamentos em todo o continente, Europa e outras latitudes, entre 12 e 16 de outubro. Esta convocatória foi um acordo do Fórum Social Mundial reunido em Belém do Pará, Brasil, no início do ano, por sugestão das organizações indígenas. As demandas dos povos indígenas e, sobretudo, suas propostas de Bom Viver e Estados Plurinacionais formam já parte das agendas dos movimentos sociais em todo o globo. Ademais, a participação articulada das organizações indígenas em instâncias como a OIT, o Conselho de Direitos Humanos e o Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial da ONU, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entre outros organismos, tem tido resultados muito importante no apontamento e na exigência aos Estados para que respeitem nossos direitos. A ele se agrega a Primeira Audiência do Tribunal Internacional de Justiça Climática, cuja constituição foi um dos acordos da Cúpula de Maio, e que se realizou em Cochabamba, Bolívia, em 13 e 14 de outubro no marco da Minga Global. Finalmente, o ano se encerra com a decisiva participação do movimento indígena aqui em Kimaforum09, cujas conclusões e declaração recolhem o substancial de nossas propostas frente à mudança climática.

Que avaliação o senhor faz da implementação e aplicação da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas?

Miguel Palacín Quispe - Por um lado, o panorama não é animador. Os direitos consagrados na Declaração são sistematicamente vulnerados em nossos países pelos Estados e pelas empresas transnacionais. Violentam-se territórios, criminalizam-se as organizações indígenas, não se consulta nossos povos sobre as leis e os projetos extrativos que nos afetam; não existe o menor respeito pela autonomia e a autodeterminação. Tudo isso sem mencionar a exclusão de serviços essenciais como saúde e educação interculturais, entre muitas outras carências. Na região, a Colômbia, o Chile e o Peru são os casos mais graves onde se violentam nossos direitos. No Equador, ainda que a Constituição os acolha em grande parte, o governo promove normas que os vulneram, como as leis de Mineração e da Água, o que motivou grandes mobilizações indígenas e agora estão em um processo de diálogo bastante difícil. Bolívia deu status de Lei Nacional à Declaração e o movimento indígena está trabalhando no desenvolvimento de leis para que o Bom Viver e a Plurinacionalidade expressados na Constituição se materializem. Em resumo, a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU é uma conquista importante, mas mais de 500 anos de resistência têm nos ensinado que somente nossa luta articulada, o debate e a consolidação de nossas propostas e uma efetiva incidência internacional, possibilitarão que nossos direitos sejam uma realidade.

Em alguns países como Guatemala, Bolívia, Peru, Equador, a população indígena equivale - ou pode superar - o número de cidadãos não indígenas. Por que motivo, mesmo com sua população numerosa, os indígenas ainda têm seus direitos negados?

Miguel Palacín Quispe - Porque em nossos países, a diferença dos países desenvolvidos, as maiorias são as marginalizadas e excluídas. O problema é que o genocídio físico e cultural da invasão europeia não se encerrou com as independências. Constituíram-se Estados uninacionais, copiados da Europa. Os crioulos só herdaram o poder, não o transformaram. Os povos indígenas foram excluídos desde o início, os Estados crioulos desenvolveram campanhas de extermínio indígena. A colonização não só sobrevive até hoje, como também tem se fortalecido com a chamada globalização. Justamente com a imposição global do neoliberalismo, nossos povos, seu modo de vida, seus direitos, são considerados obstáculos para o criminoso saque dos bens naturais e a deterioração da Mãe Terra. Dali vem a criminalização dos nossos direitos: somos perseguidos, deslocados, assassinados, torturados, desaparecidos e se militarizam nossos territórios. Mas é precisamente isso o que nos faz despertar, dar o salto na resistência à proposta, articularmos e avançar na conquista de nossos direitos.

Nesse contexto de luta por hegemonia e contra as consequências do capitalismo, o senhor crê que as mobilizações indígenas têm tomado maior dimensão quanto à visibilidade?

Miguel Palacín Quispe - Definitivamente. Na região e em muitas partes do planeta, o movimento indígena é reconhecido como o novo protagonista político, a queda dos paradigmas capitalistas faz voltar os olhos a nossos paradigmas: diálogo e harmonia com a Mãe Terra, reciprocidade, interculturalidade. No âmbito andino, as constituições da Bolívia e do Equador já recorrem a propostas de Bom Viver e Estados Plurinacionais. Nossas mobilizações não só têm maior dimensão em termos quantitativos, o que já é importante, como, sobretudo, em termos qualitativos, por sua capacidade de apresentar propostas à crise de civilização, articular-se ao conjunto dos movimentos sociais e obter incidência nos espaços nacionais e internacionais, tanto oficiais como da sociedade civil em geral.

Muitas comunidades indígenas estão em zonas ricas em recursos naturais. Como lidar com vontades ditadas pelas grandes transnacionais? Qual deveria ser o papel dos Estados?

Miguel Palacín Quispe - O movimento indígena combina duas estratégias: por um lado, a participação articulada em fóruns internacionais, como os organismos das Nações Unidas e da OEA, onde apresentamos denúncias aos Estados e relatórios alternativos sobre o cumprimento dos instrumentos internacionais. Nos âmbitos nacionais também apresentamos demandas ante os organismos dos Estados e os sistemas de justiça.A outra estratégia é a mobilização, que não são apenas marchas, plantões e outras ações de protesto, senão também capacitação de nossos líderes, intercâmbios de experiências, campanhas articuladas, vinculação com o conjunto do movimento social em nível nacional e internacional, fortalecimento de nossas instituições comunais, construção de tribunais éticos, etc. Ambas as estratégias as desenvolvemos sempre desde a perspectiva de nossos direitos e os direitos da Mãe Terra, deixando claro que não mendigamos favores e sim exigimos o exercício de direitos amparados por normas nacionais e internacionais. E em ambas é também muito importante a difusão de nossas demandas e nossas propostas, para fortalecer nossa incidência.

Por outro lado, é comum que entre as comunidades indígenas existam altas taxas de mortalidade, analfabetismo e extrema pobreza. Esta realidade mudou?

Miguel Palacín Quispe - Não, lamentavelmente. Uma exceção pode ser a Bolívia, mas em geral os povos indígenas da região na prática não existem para os Estados. Nem sequer somos incluídos nas estatísticas oficiais sobre estes indicadores de desenvolvimento social e essa é uma das severas observações que fez o CERD da ONU a nossos Estados. Nós interpretamos isto a partir de duas variáveis: a primeira, que não se trata de desinteresse por elevar nossas condições de vida, e sim de um interesse consciente por manter-nos na marginalização e exclusão a fim de favorecer a invasão de nossos territórios e o saqueio de nossos bens naturais. A segunda, que não queremos programas sociais assistencialistas nem ser "incluídos" no "desenvolvimento".O que queremos é que se respeite nosso direito a decidir nosso modo de vida, nossa cultura, nossas autoridades, nossos territórios e bens naturais. Não demandamos políticas públicas inclusivas: exigimos políticas públicas interculturais em todos os âmbitos.

Em resumo, qual será o grande desafio para os movimentos indígenas em 2010?

Miguel Palacín Quispe - Como CAOI nós traçamos quatro eixos estratégicos para 2010: a promoção do Bem Viver e dos Direitos da Natureza, o fortalecimento das articulações indígenas, a afirmação e ativação dos direitos indígenas e a incidência frente à mudança climática e às indústrias extrativas. Em resumo, podemos definir nosso programa do próximo ano como o desenvolvimento dos Estados Plurinacionais, Bom Viver, direitos coletivos e agenda indígena frente à crise civilizatória. Nossos desafios são, então, posicionar as alternativas indígenas, especialmente o Bom Viver, frente à crise civilizatória do modelo capitalista, assim como fortalecer o exercício e a defesa dos direitos indígenas, ativando mecanismos internacionais de proteção e articulando alianças para fortalecer as alternativas indígenas.
Fonte : ADITAL

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